Por Orley José da Silva
Esta matéria permanecerá nas assembleias legislativas e
câmaras de vereadores até o próximo dia 24, tempo limite para que os Planos
Municipais e Estaduais de Educação (PME e PEE, respectivamente) sejam votados e
sancionados.
Hoje, centros acadêmicos, sindicatos, partidos políticos,
entidades representativas de classe e imprensa, com raríssimas exceções,
acham-se submissos à essa ideologia.
É provável que a compreensão dos vereadores e deputados
estaduais acerca da Ideologia de Gênero seja confusa e imprecisa, como tem sido
na sociedade. Isto porque há uma cortina de fumaça discursiva, instalada
intencionalmente e muito bem articulada, para dificultar a chegada das
diferentes informações às pessoas e formar um consenso sobre o tema. Esta
dificuldade é posta ao público pela escolha lexical, a interdição de dizeres,
uma rala e puída roupagem científica, além de um intrincado labirinto semântico
para os seus conceitos, termos e nomenclaturas.
Caso os políticos ainda não dominem todos os discursos
envolvidos, é bom que rompam o nevoeiro estabelecido e conheçam urgentemente as
diferentes visões acerca do assunto, para o voto consciente e sintonizado com
os interesses majoritários da população. Esta matéria permanecerá nas
assembleias legislativas e câmaras de vereadores até o próximo dia 24, tempo
limite para que os Planos Municipais e Estaduais de Educação (PME e PEE,
respectivamente) sejam votados e sancionados.
O leitor deve ter acompanhado a votação do Plano Nacional de
Educação (PNE) no Senado, em 2012, e na Câmara dos Deputados, em 2014. Em ambas
as casas legislativas a Ideologia de Gênero foi apresentada, por iniciativa do
Governo Federal, mas rejeitada pelos dois plenários. O Congresso deu a seguinte
redação final à Lei 13.005/2014, em seu art. 2, inc. III: dizendo que o Estado
deve garantir "a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de
discriminação", sem, no entanto, especificar e/ou privilegiar grupos
sociais.
Agora, a mesma matéria ressurge nas votações dos Planos
Municipais e Estaduais de Educação, trazida pelo relatório final da 11ª
Conferência Nacional de Educação (CONAE), do Ministério da Educação (MEC). Este
relatório comumente usado pelas prefeituras e estados para construírem seus
planos, ignora a decisão do Congresso e faz 35 referências à Ideologia de
Gênero. O relatório traz, por exemplo, palavras e termos rejeitados no PNE, a
saber: Gênero, Identidade de Gênero, Ideologia de Gênero, Diversidade Sexual,
Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Homofobia e Orientação
Sexual. Ao trazer de volta estas expressões, o texto do CONAE induz prefeituras
e estados a também ignorarem à vontade do Congresso manifestada no texto do
PNE. Além do mais, abre espaço nos planos educacionais para a inclusão do
ensino da Ideologia de Gênero, no decorrer dos 10 anos de validade desses
documentos.
Por trás da insistência governamental, está a intenção de
normatizar e incrementar o ensino do Gênero que, incluído nos temas
transversais, já faz parte da rotina pedagógica de várias escolas. O MEC e as
secretarias estaduais e municipais de educação realizam cursos para a formação
de professores em cooperação com universidades, movimentos sociais em defesa
dessa causa e editoras de livros didáticos e paradidáticos. Mesmo sendo notório
que o assunto choca e incomoda uma parcela considerável de pais, alunos e
professores que se sentem indefesos diante da força de imposição que esta visão
opera no sistema de ensino.
Afinal, o que prega a Ideologia de Gênero?
De acordo com a Ideologia de Gênero, os seres humanos não se
dividem em dois sexos e as diferenças biológicas e naturais não contam para a
definição do homem e da mulher, mesmo diante das diferenças anatômicas. As
pessoas tornam-se homens ou mulheres, ou adquirem esses papéis, com o passar do
tempo, de acordo com o contexto histórico, social e cultural.
Em vista disso, as crianças devem ser criadas e educadas de
forma “neutra” para que elas mesmas escolham o Gênero no futuro, independente
da identidade dos seus corpos. A escolha, no entanto, nem sempre é definitiva
porque é visto como normal ao homem gostar de mulher em determinado período da
vida, de homem em outro momento, ou gostar de ambos. Da mesma forma, é
considerado normal que o mesmo fenômeno ocorra também com as mulheres.
Essa ideologia recomenda à escola a não classificar os
alunos em meninos ou meninas, mas crianças. As roupas e suas cores, brinquedos
e banheiro, é melhor que sejam compartilhados igualmente por ambos os sexos,
sem as conhecidas diferenciações marcadas pela cultura tradicional. Todas essas
medidas são consideradas importantes porque propiciam um ambiente de igualdade
e neutralidade necessário ao processo de definição do Gênero por parte das
crianças.
A construção do conceito de Ideologia de Gênero
A palavra “gênero” é usada desde os anos de 1980 em estudos
de grupos feministas, gayzistas e marxistas sobre família e sexualidade,
baseados nas teses de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas foi a partir de 1990,
impulsionadas pela publicação do livro “O problema do gênero”, de Judith
Butler, professora da Universidade de Berkeley (EUA), que essa palavra e essa
ideologia gradativamente evoluíram para a atual configuração.
Um momento importante para o reconhecimento e
desenvolvimento dessa ideologia foi a IV Conferência Mundial sobre a Mulher:
Igualdade, Desenvolvimento e Paz, de Pequim, em 1995. Constava no programa que se
falasse sobre “discriminação sexual”, mas os grupos feministas conduziram
astutamente a discussão para a “discriminação de gênero”. Com essa estratégia,
introduziram este tema na agenda da Organização das Nações Unidas.
A confusão semântica causada pela palavra “gênero” durante a
Conferência de Pequim, e nos anos subsequentes, teve culminância na Conferência
de Yogyakarta, na Indonésia, em 2006, quando se produziu um consenso acerca dos
termos “Identidade de Gênero” e “Orientação Sexual”. Nesta Conferência, além de
resolverem o problema semântico, os grupos feministas e agora também os
gayzistas, conseguiram incluir a Ideologia de Gênero no programa de direitos
humanos da ONU para os países membros.
Desde então, os esforços da ONU acentuaram-se para que os
países membros adotem, por um lado, a clara política de “desconstrução da
heteronormatividade”, ou seja, para deixar de ser normal o masculino e o
feminino e também a família formada por homem, mulher e seus filhos. Por outro
lado, recomenda a “construção da homonormatividade”, ou seja, para se
considerar como normais a existência do gênero neutro, à diversidade sexual e à
diversidade familiar.
Essa causa ganhou mais força com a subida de Barack Obama ao
poder, nos Estados Unidos, em 2009. Desde então, ele trabalha para quebrar a
resistência do tradicionalismo americano contra essa ideologia e usa a
diplomacia e as relações comerciais para promover a agenda de Gênero no mundo.
Ele criou, por exemplo, a função informal de “embaixador gay” com a finalidade
de divulgar a causa no mundo e nomeou Randy Berry para o posto. Este diplomata,
inclusive, veio prestigiar a última parada gay de São Paulo.
A eleição presidencial de François Hollande, na França,
representou mais um ganho extraordinário para esse movimento. O presidente
francês empenha-se em implantar essa agenda em seu país e influenciar os países
membros da Comunidade Europeia a tomarem decisão semelhante. Em abril passado,
numa clara intenção de desafiar e ao mesmo tempo provocar desconforto à Igreja
Católica, o presidente francês indicou o diplomata Laurent Stéfanini, gay
assumido, para o cargo de embaixador no Vaticano. O papa Francisco não o
aceitou.
O Brasil foi um dos primeiros países a seguir essa
orientação da ONU quando, em 2009, o presidente Lula assinou o Decreto
7037/2009 que aprovou o 3º Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Em seu
eixo orientador III, diretriz 10, objetivo estratégico V, ação programática d,
o Decreto estabelece a meta de: “reconhecer e incluir nos sistemas de informação
do serviço público todas as configurações familiares constituídas por lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais, com base na desconstrução da
heteronormatividade.” (grifos nossos). Ou seja, o Governo não quer somente o
reconhecimento das outras configurações familiares e da diversidade sexual,
como se propaga ao senso comum, mas a desconstrução do status de normalidade
para a família tradicional, ainda contemplada na Constituição.
Para que as mudanças ocorram efetivamente, é necessário mudar
a Constituição. Os governos Lula e Dilma bem que tentaram, mas não venceram a
resistência do Congresso. O último exemplo foi a tentativa de incluir a
Ideologia de Gênero no PNE. Ciente da pouca chance de cumprir com sua agenda no
Congresso, o governo vale-se da estrutura de secretarias especiais,
ministérios, autarquias e estatais para estabelecer sua vontade, driblando a
Constituição e o Legislativo. Dessa forma, empreende ações por meio de
decretos, portarias, resoluções e até circulares. Além do mais, oferece
estrutura, cargos, financiamento e dá liberdade para que defensores dessa
ideologia exerçam o lobby dentro do próprio Governo e também em estados e
municípios com a finalidade de implantar políticas do interesse deles. Foi
assim, driblando a vontade do Congresso, que o CONAE/MEC inseriu em seu
relatório todos os interesses da Ideologia de Gênero.
Argumentos favoráveis e contrários
A professora Ângela Soligo, da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entende que os gêneros devem ser
debatidos com as crianças em sala de aula. Segundo ela, a criança precisa
alargar os horizontes e obter conhecimentos diferentes daqueles recebidos em
casa. Para tanto, “não se pode negar que o gênero diferente do sexo exista. A
escola tem que fornecer ao aluno subsídios para que ela pense e construa suas
próprias opiniões.” O cientista social Alípio de Sousa Filho, professor na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), demonstra a construção
histórica da sexualidade humana para relativizar a crença na
heteronormatividade: “(...) no longo processo de colonização do imaginário de
nossas sociedades, ganhou força uma concepção que corresponderia a uma
naturalização da sexualidade humana, cujo efeito mais destacado é ter criado a
ideia segundo a qual a heterossexualidade seria inata (a natureza daria os
exemplos em todas as espécies), sendo então natural e normal, e a homossexualidade
seria uma tendência adquirida, nem natural nem normal.”
O discurso de resistência ao Gênero nas escolas ecoa em
algumas vozes. O juiz de direito Antonio Pimenta, de Guarulhos (SP), questiona
a fonte dessa teoria: “Você querer colocar na cabeça de um ser humano que ele
pode ser mulher se ele nasceu com corpo masculino é negar a biologia.” O pastor
Franklin Graham tenta desconstruir o principal fundamento dessa visão
ideológica: “Ensinar que não há diferença entre meninos e meninas nada mais é do
que uma mentira. Somos diferentes porque Deus nos fez diferentes.” O Papa Bento
XVI sintetiza a visão comum aos cristãos: “De acordo com a ideia bíblica da
criação, a essência da criatura humana é a de ter sido criada homem e mulher.
Esta dualidade é um aspecto essencial do que é o ser humano, como definido por
Deus. Esta dualidade, entendida como algo previamente dado, é o que está a ser
agora colocado em causa.”
Uma ideologia que se estabelece com força de verdade para
governos e mercados
Talvez o leitor questione por que uma ideologia sem consenso
na sociedade e na Ciência, mesmo nos campos científicos nos quais estabeleceu,
ganha status de verdade absoluta a ponto de influenciar leis e forçar a mudança
de paradigmas sociais cristalizados. Uma ideologia que embora trate do corpo,
não se firmou nos estudos biológicos e genéticos, mas acomodou-se nas ciências
sociais e humanas, sobretudo nos limites do discurso e do comportamento. Uma
ideologia que não consegue se equilibrar no critério cartesiano de verdade. Que
para vestir-se no manto científico, orienta-se nos terrenos movediços do
desconstrutivismo e do relativismo filosófico. Muitos dos seus achados
importantes vieram pelo método científico de pesquisa-ação, que é livre de
preocupação objetiva e predominantemente subjetivo como nenhum outro método.
Este é, aliás, um método científico ideal para a pesquisa engajada e de
legitimação para a militância de causas.
É possível que haja bem mais relações de interesse do que é
percebido pelo senso comum sobre o esforço global para a troca da
heteronormatividade pela homonormatividade nas sociedades. Este não é,
portanto, um fenômeno somente brasileiro. Algumas perguntas em forma de
resposta, inclusive, podem ser arriscadas a partir da análise dos ditos e não ditos
encontrados em vozes de autoridade para essa ideologia e também das Nações
Unidas.
Merecem estudos aprofundados, por exemplo, as motivações da
ONU, dos governos, das universidades e grandes empresas em apoiar e promover a
Ideologia de Gênero, elaborada a partir dos ideais feministas e gayzistas.
Pode-se especular que atende aos interesses globais pelo controle demográfico,
por razões óbvias; da indústria turística e do entretenimento, porque aumenta a
liberdade e o desprendimento individual para viagens; o maior consumo de bens e
serviços de uso individual porque se gasta menos com o sustento e a fixação da
prole; maior volatilidade dos bens e recursos individuais; reflexos diretos nos
sistemas de previdência pública e privada e de seguros; menor apego à cultura e
aos valores locais e familiares em atendimento à cultura e valores universais;
menor compromisso do indivíduo com o núcleo familiar, em benefício do coletivo;
menor necessidade de acúmulo de capital para investimento na família ou
herança; fortalecimento dos governos e do mercado sobre a vontade dos cidadãos,
pelo enfraquecimento e/ou derretimento do modelo de agregação familiar
tradicional; tentativa de quebrar a espinha dorsal das culturas judaica e
cristã, (e o consequente enfraquecimento da influência dessas culturas neste
novo mundo que se desenha) visto que são baseadas nos conceitos de
heteronormatividade e de família tradicional. Pelo visto, o apreço que essa
ideologia alcança principalmente dos governos, dos mercados e da cultura é porque
ela serve muito bem ao projeto de construção de uma Nova Ordem Mundial.
Uma ideologia que se beneficia da interdição dos discursos
Infelizmente, não há na Academia espaço para vozes
contrárias à essa ideologia, onde especulações como as listadas acima pudessem
ser confirmadas ou não. Isto porque, como estratégia de proteção contra as
contestações, estabeleceu-se a interdição discursiva, ou seja, esse tema foi
colocado no campo dos assuntos tabu e do politicamente incorreto. O lema é não
discutir, mas aceitar incondicionalmente o que se diz. Com isto, a universidade
deixa de contemplar a pluralidade de ideias para satisfazer-se num projeto que
estabelece nela e na sociedade uma hegemonia discursiva.
O espaço para a contestação acha-se cada vez mais escasso
também no restante da sociedade. Pode-se considerar que a influência formadora
da pesquisa engajada que é produzida na universidade, atravessou os seus muros.
Hoje, centros acadêmicos, sindicatos, partidos políticos, entidades
representativas de classe e imprensa, com raríssimas exceções, acham-se
submissos à essa ideologia. Os recursos argumentativos de defesa e ataque
criados e desenvolvidos pelos que seguem essa visão, cumprem o efeito de calar
os que se opõem. Mesmo que sejam manifestações pacíficas de opinião e
respeitosas. Não escapa nem tese acadêmica. Tudo isto é feito com a intenção
promover uma agenda positiva sem a necessidade de enfrentar o debate de ideias.
Na própria universidade, há questionamentos sobre os gastos
públicos com disciplinas ligadas ao Gênero criadas para espalhar a ideologia
nos mais diversos cursos de graduação, especialmente nas licenciaturas, e
também na pós-graduação. As interpelações internas à universidade são mais
contundentes quando se analisa a função dos grupos de pesquisa e da produção de
dissertações e teses. Em parte, essa produção acadêmica é financiada pela CAPES
e pelo CNPq, além de agências de fomento estaduais. A crítica corrente diz
respeito à necessidade de racionalizar a aplicação do escasso dinheiro público
para a pesquisa científica, haja vista que o país carece, prioritariamente, é
de encontrar o rumo para o desenvolvimento educacional, científico e
tecnológico.
Os deputados estaduais e vereadores precisam também
interpretar o sentido da mensagem veiculada pela máquina de propaganda dessa
ideologia. A ideia repetida à exaustão, que hoje é quase senso comum, empresta
aos contrários ao ensino da Ideologia de Gênero para as crianças, o título de
preconceituosos. Segundo a propaganda, essas pessoas interferem na opção sexual
de terceiros e impedem a realização de seus direitos. Mas esta não é a regra.
Pelo menos os bem intencionados defendem às liberdades para todos, sem
privilégios, o respeito entre as pessoas e que todos usufruam igualmente dos
benefícios do estado democrático de direito.
O que está em discussão neste momento é a possibilidade de
se aprimorar e tornar compulsório o ensino da Ideologia de Gênero para crianças
e adolescentes em creches, CMEIs de escolas públicas e privadas. Uma ideologia
ainda em desenvolvimento, muito controversa, que substitui a
heteronormatividade (eixo no qual as crianças são criadas em nossa sociedade)
pela homonormatividade. É justamente esta substituição que se constitui no
principal ponto de discórdia entre os dois grupos. Outro ponto de discórdia
igualmente importante é a proposta de fazer com que as crianças educadas pela
escola nessa ideologia, assumam a tarefa de mudar a visão de suas famílias e da
sociedade. Visão esta que os defensores da ideologia considerada desatualizada,
preconceituosa e constituída de tabus. Uma pergunta que surge neste final é
quais as consequências e conflitos um projeto como esse, de reengenharia
social, pode trazer aos alunos e às famílias visto que eles são culturalmente
entranhados no modelo tradicional de família.
_______________
Orley José da Silva, é professor em Goiânia, mestre em
letras e linguística (UFG) e mestrando em estudos teológicos (SPRBC).